Texto de Ana Cristina Marques
O renomado pediatra espanhol Carlos González incentiva os pais a quebrarem as regras “absurdas e falsas” e
considera os castigos “inúteis”. A disciplina, por sua vez, é tida como
uma “qualidade interna” e não a consequência de repreensões. Para Carlos
González, as crianças devem ser tratadas com mais respeito do que os
adultos: podem dormir na cama dos pais, se assim o entenderem, e não
devem ser obrigadas a comer (as verduras, ao contrário do que seria de
esperar, não são exceção ). Acima de tudo, têm de ser amadas.
Pegar
os filhos no colo e consolá-los quando choram são algumas das ideias
defendidas pelo pediatra espanhol que, apesar de ser conhecido pela
irreverência, não se acha polêmico nem contra-corrente. Licenciado em
medicina pela Universidade Autônoma de Barcelona, Carlos González é o fundador e presidente da Asociación Catalana Pro
Lactancia Materna (que defende o aleitamento materno).
Mas também é escritor: entre os muitos livros, destaque para o
popular Mi niño no me come, de 2002. Uma nova edição de Bésame Mucho –
Como criar os seus filhos com amor chegou em junho de 2013 e Pergunte ao
Pediatra estreou-se no mercado nacional em janeiro deste ano.
Ironia
ou não, o autor considera desnecessários livros para educar uma
criança. O instinto natural pode muito bem ser a solução: está casado há
mais de 30 anos e é pai de três – “foram eles que me ensinaram a educar um filho”.
–
Já disse várias vezes que, na sua opinião, não são precisos livros para
educar crianças. Não é um pouco contraditório tendo em conta que é um
autor bem sucedido?
Menos contraditório do que parece. Escrevo livros e digo que
não é necessário comprá-los ou lê-los para criar um filho. O problema é
que, há décadas, a maior parte dos livros que foram publicados em
Espanha sobre a paternidade diziam coisas com as quais eu não estava de
acordo – nem eu nem a maioria dos cientistas que lidam com o assunto; os
livros sérios sobre psicologia ou pediatria eram muito diferentes
daqueles destinados aos pais. Por essa razão, decidi escrever livros com
informação razoável para que os pais possam ter por onde escolher.
–
O amor é a regra de ouro na educação? Por que acha que muitos
profissionais alegam que o afeto deixa a criança mais mimada e
dependente?
Defendo que devemos tratar os nossos filhos com carinho e respeito. Não
penso que algum profissional esteja contra estes princípios. O que se
passa é que alguns pensam que podem amar os filhos sem ter de lhes pegar no colo ou consolá-los quando choram. Isso coloca um problema: como é
que a criança sabe que gostam dela se ninguém o demonstra? Nós, adultos,
demonstramos o nosso amor fisicamente: abraçamos os amigos e beijamos
os cônjuges. Não é suficiente dizer a um namorado ou namorada “amo-te”.
Um adulto necessita mais do que palavras para se sentir amado e um bebé,
que não as entende, ainda mais.
– Defende que as crianças podem dormir na cama dos pais.
As crianças pequenas despertam várias vezes durante a noite, quase a
cada hora e meia ou duas horas, sobretudo entre os quatro meses e os
dois ou três anos. Para os pais é muito incómodo terem de se levantar
três ou cinco vezes por noite para cuidar do filho. Por isso, muitas
famílias descobrem que é mais cómodo dormirem todos juntos.
– Mas quais os benefícios das crianças em dormir com os pais?
Benefícios? Muitas crianças gostam de dormir com os seus pais e
vice-versa. Esse é o benefício: são felizes e dormem tranquilos. Mas
também pode haver crianças ou pais que prefiram dormir sozinhos.
Basicamente, há três maneiras de se organizarem para dormir: a criança
pode ficar no seu quarto, no dos pais, mas no seu próprio berço ou cama,
ou na cama dos pais. Estas três formas combinam-se de mil maneiras. O
importante é que os pais compreendam que têm o direito de decidir sobre a
maneira que melhor funciona para todos e que não são escravos da sua
decisão, que podem mudar de ideias.
– Para si, não se deve obrigar uma criança a comer e não faz mal se esta não comer vegetais. Porquê?
As crianças pequenas não costumam comer muitas verduras. A verdura é
baixa em calorias e simplesmente não caberia na barriga toda a
quantidade que teriam de comer. Ao invés, as crianças devem procurar
alimentos de alto teor calórico: massa, frango, arroz, pão… Com o tempo,
o gosto muda. Atualmente, todos comemos coisas que em pequenos não
gostávamos, a menos que os nossos pais tenham insistido tanto que nos
fizeram odiar verduras. Os vegetais são muito saudáveis, mas o
importante não é quantos vegetais comemos aos nove meses, mas sim
durante toda a vida. Obrigar um bebé a comer muita verdura, fazer com
que este a odeie e, de seguida, deixar de tentar é um desastre. Se o
deixarmos estar, comerá pouco na infância e, uma vez crescido, comerá
mais.
– Não acredita nos castigos e na imposição de limites. A criança não precisa de, em tenra idade, ter regras?
Os castigos são inúteis, tanto para as crianças como para os adultos. É
claro que é preciso impor limites aos mais novos. Todos os pais o fazem.
O que digo é que os limites lógicos e razoáveis são impostos pelos pais
sem que ninguém diga nada. Não deixamos os nossos filhos brincar com o
fogo ou com facas. Rejeito os limites que não considero lógicos ou
razoáveis, que não se colocam por necessidade ou para evitar quaisquer
danos, mas que apenas servem para demonstrar “aqui sou eu que mando”.
– O que é um castigo razoável?
Não existe o castigo razoável.
– Como se lida com crianças desobedientes e manipuladoras?
O que fazemos com os maridos ou esposas que são desobedientes ou
manipuladores? Com os namorados, amigos, parentes ou empregados? Será
que os adultos nunca fazem nada de mal? Claro que sim, mas não os
punimos (a não ser que cometam um delito que apenas os juízes podem
punir). Eu não castigo a minha esposa ou os meus amigos, vizinhos,
taxistas… Como médico não castigo os meus pacientes nem a minha
enfermeira. Porquê castigar apenas os meus filhos? Que terão feito eles
de tão terrível para merecerem um castigo? É absurdo. É curioso que se
fale de crianças “manipuladoras” quando estamos precisamente a falar de
colocar regras e limites a crianças. Isto é, para manipular. Nós
manipulamos as nossas crianças, compramos livros que explicam como
fazê-lo… e os “manipuladores” são eles?
– O pediatra norte-americano Thomas Berry Brazelton defende amor seguido de disciplina. Como comenta?
O problema prende-se com o significado de disciplina. Falamos, por
exemplo, de “disciplinas olímpicas” ou de um pianista “disciplinado” que
ensaia todos os dias. A disciplina é uma qualidade interna das pessoas.
A disciplina não é gritar ou castigar.
– O que Brazelton
diz é que não se controlam as crianças, mas que se deve ensinar
autocontrolo às mesmas. O que é, então, para si a disciplina? E qual o
seu papel na educação de uma criança?
Exatamente, autocontrolo. As crianças são controladas e isso é
precisamente o oposto de nós nos autocontrolarmos. O autocontrolo
ensina-se com o exemplo. Eu não bato nos meus filhos porque tenho
disciplina, autocontrolo. Não digo ao meu filho para se calar porque não
me deixa ouvir televisão, ao invés desligo o televisor para ouvi-lo
melhor. Isso é a disciplina.
– Para que as pessoas entendam melhor as suas ideias, muitas vezes compara crianças com adultos. Costuma funcionar?
Espero que sim. As crianças não são adultas, mas são parecidas. E, em
todo o caso, precisam de mais respeito do que os adultos, porque são
mais frágeis. Precisam de ser mais toleradas porque são inexperientes e
ignorantes, podem cometer erros. Muitas vezes castigamos ou repreendemos
as crianças por coisas que nunca puniríamos num adulto. Se vejo a minha
esposa ou um amigo a chorar, pergunto o que se passa e tento
consolá-los. Para os meus filhos é igual. Se estou a comer com um amigo e
vejo que este deixa metade da comida no prato, não o obrigo a acabar
tudo. Com os meus filhos também não faço isso. Jamais bateria na minha
mulher, no meu pai ou em companheiros de trabalho. Muito menos nos meus
filhos.
– Vê-se como um pediatra que incentiva os pais a quebrarem as regras? Porquê?
Só as regras absurdas, as regras falsas. Estou completamente de acordo
com o circular pela direita ou com lavar os dentes depois de comer.
Defendo várias regras fundamentais: nunca bater nas crianças, não
insultar ou humilhar… Mas se alguém propõe regras ridículas, como “não
pegar a criança ao colo” ou “não consolá-la quando chora”, então digo
para os pais ignorem essas regras, porque são estúpidas.
– As suas ideias podem chocar a comunidade de pais em geral? Gosta de ser polémico?
Nem por isso, acho que maioria dos pais concorda fortemente com as
minhas ideias. A maior parte deles amam os filhos e querem demonstrá-lo.
Alguns acreditaram na regra de “não pegar a criança ao colo”. Tentaram
colocá-la em prática, mas custou-lhes. Quando ouvem que não é necessário
sacrificarem-se, que podem abraçar o seu filho sempre que lhes
apetecer, sentem-se libertos.
– Acha que contribui para reduzir a culpabilização dos pais?
Espero que sim, embora seja muito difícil. Os pais (bem, as mães) tendem a sentir-se culpados por tudo.
– Não é a favor das creches, porquê?
Estou convencido que as crianças pequenas, até aos três anos, mais ou
menos, estão melhor com os seus pais do que em qualquer outro lugar. A
não ser, claro, que tenham maus progenitores, que os maltratem ou
ignorem. Mas estou seguro que os nossos leitores são excelentes pais,
que amam e cuidam dos filhos.
– Imaginemos uma criança que
vai para a creche desde pequena, em vez de ficar com os pais. De que
forma é que isso pode influenciar o seu desenvolvimento?
A criança vai, provavelmente, chorar porque não se quer separar da mãe.
Se chora é porque algo está errado e a criança está a sofrer. Penso que é
importante que os nossos filhos sejam felizes. Além disso, na maioria
das creches, pelo menos em Espanha, há muito pouco pessoal. A nossa
legislação permite que oito bebés, com menos de um ano, estejam ao
cuidado de uma só educadora de infância. Em casa, há um ou dois pais por
filho. Isso permite uma interação muito maior e, consequentemente, um
melhor desenvolvimento e aprendizagem.
– Disse algumas vezes que os pais devem guiar-se pelo instinto. Porquê?
Exato, algumas vezes. Não sempre. O instinto não é tudo. Somos seres
humanos. Temos cultura, civilização, ciência…podemos fazer algumas
coisas melhores do que guiados apenas pelo instinto puro. Mas também
podemos torná-lo pior. O instinto permitiu aos nossos antepassados criar
os seus filhos durante milhões de anos, antes de existir qualquer
civilização ou cultura. O instinto não é perfeito, mas, geralmente, é
muito bom.
– Como foi com os seus filhos? Adotou todas as ideias que defende ou na ltura era inexperiente?
Estou casado há 32 anos; os meus filhos têm 22, 26 e 30 anos. Criei-os o
melhor que soube. Foram eles que me ensinaram a educar um filho.
Aprendi a criar um filho lembrando-me, em primeiro lugar, como fui
educado. Em segundo, ao criar os meus próprios filhos. É assim que
aprende quase todo o mundo.
– É tarde demais para retificar alguns comportamentos errados, de pais para filhos?
Nunca é tarde de mais se isso é uma coisa boa. Todos os pais fazem
coisas boas e más. Às vezes, alguns têm consciência dos erros. Todos os
pais devem esforçar-se por fazer o seu melhor.
– Os pais levam os pediatras demasiado a sério?
Alguns sim, preocupam-se demasiado se o filho tem tosse ou se se passa
algo sem importância. Em contrapartida, há muitos que não se preocupam
que um bebé com menos de um ano passe dez horas diárias separado dos
pais.
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Este texto de Ana Cristina Marques pode ser encontrado aqui: http://observador.pt/2014/05/26/todos-os-castigos-sao-inuteis-diz-o-pediatra-contra-carlos-gonzalez/